segunda-feira, 30 de abril de 2007

Boletim de Ocorrência Sem-hora

Uma fila de guardas do DETRAN estava multando os carros no estacionamento. Corpanzil aprumado, cadernetas na mão, capacetes fosforescentes sobre as motocicletas. Era um espetáculo.
Eles esticavam o pescoço, como uma gazela, e, assim, pareciam mais altos. Banqueteavam-se com a quantidade de multas.
Entrei no estacionamento e liberei o cinto. Avistei uma vaga e, quando já estava chegando ao meu destino, surge um daqueles guardas, talvez o mais forte e o mais feroz. Ele me abordou com aquela "urbanidade" característica de todos os guardas que já conheci:
- Senhora, nós estamos multando e a senhora passa sem o cinto, senhora? - O tratamento de "senhora" não tinha nada da suposta respeitabilidade que esse pronome conteria. Esse "senhora", de tão repetitivo, já se tornou um pronome de destratamento. Aliás, já não existe mais ninguém sem-hora!
Antes que eu tivesse tempo para explicar que acabara de tirar o cinto e que estava há cinco segundos do meu destino, ele me interceptou:
- Não importa, o carro está em movimento. A senhora vai ser multada! - Disse ele em tom de ameaça.
Bem, eu sei que essa gente é irritada, quanto mais você argumenta pior a coisa fica! Às vezes, tenho a sensação que o regime militar não acabou.
Estacionei o carro, nem deu tempo abotoar o cinto.
Não olhei para trás, estiquei meu pescoço feito ele. Desfilei feito uma gazela. Quando eu retornar ao carro, verificarei se meu gesto produziu o efeito desejado.

domingo, 29 de abril de 2007

Harry, o gato!

Harry estava deitado sobre a tábua de passar, peça de muito mau gosto que ficava na suíte de sua dona. Porém, quando Harry se estirava ali, a tábua se transformava em pomposo adorno. Ele era branco, forte, grande, garboso. Tinha o pêlo lustroso e as faces proporcionais, enfeitadas por penetrantes olhos da cor amarela.
Quem o visse repousando ali, compenetrado e tranqüilo, naquela postura simétrica, poderia muito bem tomá-lo por um monge. Harry parecia passar horas meditando, cogitando, em profundo silêncio.
A mansidão do Harry era a sua qualidade mais atraente. Todavia, sob a capa da mansidão, ele escondia a sua natureza mais primitiva: a sua valentia, a sua ferocidade, a sua bravura.
Ele passara a noite brigando com um gato que ousou invadir seu território. Seus gritos de guerra quebraram o silêncio da noite e acordaram todos da casa, exceto um menino que mesmo se cutucado com vara curta não despertava.
Porém, de manhã, Harry estava ali, pacífico, orgulhoso de sua façanha, observando sua dona com ar de satisfação. Nos seus olhos nenhum resquício da sua vida noturna, apenas o brilho do seu triunfo.
Se ele pertencesse à raça humana, estaria marcado por pesadas olheiras e uma indisfarçável ruga no cenho. Que privilégio tem o gato!
Pensando nisso, acabo de descobrir a origem da minha admiração por este felino. Invejo a sua mansidão.
Que esperteza a do gato:
oculta a sua bravura sob o refinado manto da serenidade!

Especulações

– Para que foi inventada a telenovela?
Para que as pessoas, em vez de aproveitarem a vida, vejam outros aproveitá-la.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

O Cheiro de Lavanda


As luzes da sala de jantar estavam apagadas. O cheiro de comida, que sempre lhe enfunava as narinas e estimulava o seu estômago, inundava a sua memória.
Ele era perfumista, tinha aquele nariz adunco, as fossas nasais sensíveis como as de um cão. Decifrava os ingredientes de qualquer prato pelos odores. Assim, quando ele chegava em casa, ia logo recitando os ingredientes da comida.
Recordava-se que, no dia anterior àquele, chegara em casa, sentira o cheiro de alecrim e, muito bravo, reclamara para sua esposa:
– Ah, Lucília, você usou alecrim, novamente! Eu detesto esse cheiro adocicado!
– Não usei alecrim. É salsa! – Rebateu Lucília sentindo-se insultada.
– Lucília, você pode me enganar em tudo, menos com perfume.
– Alberto, por que acha que eu lhe enganaria? É salsa misturada com hortelã. Fiz um molho com noz-moscada, mel e azeite extra-virgem. Acrescentei um pouco de pimenta rosa para quebrar o doce. Experimente o prato!
– Você mente, mulher! Até na hora de preparar a comida, utiliza-se da dissimulação. Eu sei que nesse prato não há noz-moscada, cujo aroma eu reconheceria até debaixo d’água.
Porém, naquele dia, Alberto não tinha do que reclamar. A mesa de jantar não estava posta, não havia cheiro de alecrim, hortelã ou noz-moscada. Havia somente aqueles perfumes que não abandonavam a sua memória e um sufocante cheiro de lavanda. Ele estava trêmulo, tinha nas mãos um papel, que lia repetidas vezes:
“Alberto, agora você vai colocar os ingredientes que desejar na sua comida! Não sentirá mais o cheiro de alecrim, nem o de noz-moscada! Aproveite e bom apetite.”
O bilhete era curto, breve como uma estocada. Ele o lera várias vezes em busca de uma palavra que lhe desse uma pista, como se o pequeno papel contivesse um enigma. Porém, a única certeza que o bilhete lhe oferecia era que Lucília havia partido.
Ele caminhou até o espelho da sala, examinou o seu aspecto. Tinha consciência de sua má aparência e de seu ar fatigado. Observou o seu reflexo e, como se visse um estranho, disse:
– Ah, Lucília, o enjôo que eu sinto ao cheiro do alecrim é tão pequeno diante do que me causa a tua ausência! Tu me roubaste a minha filha! Essa linda menina, que suspeito não ter meu sangue.
O pior é que ele não tinha mais ninguém contra quem dirigir aquela frustração. Desferiu um golpe contra o espelho, o sangue espirrou de sua mão.
Nesse ínterim, a campainha tocou. Alberto foi atender, era o seu ajudante, o Valdomiro. Vinha lhe avisar que a sua loja havia sido arrombada.
– Vieram dois homens e me amarraram. Mas, para sua sorte, eles levaram apenas os estoques de lavanda!
Arquejando desesperado, Alberto partiu para cima de Valdomiro, cobrindo-o de pancadas.
– Foi você, seu ladrão! Eu lhe pago para vigiar a minha loja e você a rouba, assim como roubou o coração de Lucília.
Valdomiro não rebateu os socos, pois isso ia contra a sua humildade. Agachou-se para se defender.
– Patrão, desculpe me intrometer. É por causa da dona Lucília?
Alberto, indignado, chutou o estômago do empregado. A dor lancinante apagou do coração de Valdomiro tudo o que ele aprendera sobre a maneira humilde como deveria se portar diante do patrão. Ele sentiu um fogo arder em suas faces, e, tomado por um impulso febril, bateu no patrão até deixá-lo estirado. Limpando as mãos, Valdomiro disse:
– O senhor tem razão em tudo que disse, menos que sou ladrão.
Alberto tentou se erguer, mas não conseguiu. Ainda teve força para pronunciar:
– Está demitido.
Passados alguns dias, Alberto descobriu onde Lucília estava. Na casa de Gustavo, o seu melhor amigo!
Há milhares de anos essa história se repetia: a esposa escolhe como amante o melhor amigo do marido e vice-versa. Como ele não suspeitou? Era óbvio!
Lembrava-se da maneira como Lucília tratava Gustavo e o carinho que ela tinha pela esposa dele. Lucília era uma falsa. Fingia-se de amiga de Marta, simplesmente para lhe roubar o marido.
Alberto pegou a pistola, entrou na casa de Gustavo. Um empregado veio atender. Ele avançou com a arma em punho, arrombando portas.
Quando conseguiu abrir a porta do quarto do casal, ele avistou Gustavo adormecido na cama, enquanto as duas mulheres estavam nuas na banheira perfumando-se com flores de lavanda. As mesmas que ele usava para fabricar seus perfumes.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

O Mágico Viriço

Minha mãe, lendo o que eu havia escrito sobre o Viriço, reclamou:
- Olha, tu esqueceste de dizer que o Viriço também era mágico. Disse que ele era vaqueiro, peão, boiadeiro, o que é a mesma coisa! E deixou de informar que o Viriço era mágico. Tu pensas que o Viriço era um ignorante?! O Viriço era letrado, quando ninguém sabia ler, ele já lia livros complicados.
- Então, devo retificar e dizer que Viriço era mágico e um intelectual!
- Também não chegava a tanto! - Ponderou minha mãe.
- Que tipo de mágica ele fazia?
- As mágicas que todo mágico faz. Tirar coelhos da cartola, pombos de lenço, fazer um objeto aparecer em outro lugar, adivinhar pensamentos, e outras coisas do tipo.
Mas a especialidade do Viriço era fazer o povo botar ovo. Era assim: o Viriço gostava muito de brincar e, nessas brincadeiras, ele dava sempre um jeito de provocar uma briga. Ele se zangava com o sujeito. Mas era fingimento, apenas para que ele pudesse se mostrar por meio da mágica.
Foi o que aconteceu comigo. Porém, comigo ele se zangou de verdade. Ele ficou muito irritado porque eu mostrei para as visitas, para quem ele ia se exibir, seus coelhos, seus pombos, suas cobras, seus ovos, suas tralhas, que ele escondia no quintal.
Quando ele viu, gritou:
- Menina, sem-vergonha, buliçosa, senta aí e bota já um ovo!
- E a senhora obedeceu?
- Claro! Imediatamente fiquei de cócoras como uma galinha, como eu via o povo fazer. A coisa mais doida é que comecei a sentir uma dor de barriga inexplicável.
- E o ovo? A senhora botou?
- Te acalmas! O Viriço ordenou:
- Apara o ovo da bunda! Se quebrar esse ovo, eu te faço pôr um ovo de peru! - Pus a mão nas nádegas, pois Deus me livre de botar um ovo de peru.
- Pronto! - Ele disse. - Guarda. É um ovinho de beija-flor!
- Mesmo que tenha sido um ovo de beija-flor, eu morreria de vergonha.- Completei.
- Que nada! O pior sofreu mais tarde o teu pai. O Viriço fez ele botar um ovo de avestruz!

O Homem do Rolo

Todas as segundas eu encontrava o homem do "rolo". Quem o visse não imaginava a sua ocupação. Sempre de bata branca, bem passada, calças de linho, as mãos limpas e o aspecto bem asseado. Parecia um doutor.
Ele era um tipo alegre e brincalhão, daqueles que gosta de distribuir balas para as crianças. Quando eu o via, sentia logo vontade de rir. Todos nós ríamos muito às custas das conversas do homem do rolo.
O nome dele era Sebastião, morava na periferia, vivia dos rolos, mas não reclamava de nada. Apenas comentava os detalhes de seu especial ofício.
- E aí, seu Sebatião, como estão os rolos hoje? - Eu sempre lhe perguntava.
- Pelo amor de Deus! Está que é uma feira! Dia de segunda é um rolo danado!
- Final de semana, o povo capricha! - Explicou ele. - É tanta porcarinhada que haja estômago! Sobra pra mim!
- É, o povo apronta no fim de semana e na segunda eu estou enrolado! Este já é meu rolo de número setenta e um. - Concluiu ele resignado, com o sorriso de sempre no rosto.
- Só?! Até que está tranqüilo. Lembra daquele dia em que o senhor contou mais de mil rolos?
Caindo na gargalhada, ele me respondeu:
- Foi depois da páscoa. A evacuação no prédio foi geral! A culpa foi do preço do peixe! O cheiro invadiu os corredores, foi parar no gabinete do chefe. Nossa Senhora dos Entupidos que me acuda!
Suplicou seu Sebastião, colocando mais uns dez rolos de papel higiênico no banheiro feminino. No masculino, ele colocou uns vinte! E, se despedindo, entre um sorriso e outro, ele disse:
- Vou me já andando que essa função exige pressa!

quinta-feira, 19 de abril de 2007

"É um caju 'SEM-TERRA', precisa crescer!"

Um caju "sem terra". Precisa crescer!
Um cajuzinho nascendo,
primeiro abre as duas vagens, como duas asas
depois vem o caule verdinho com as folhinhas!
É um nascimento lindo.
Tão lindo quanto esse apelo que recebi nos "comentários".
Uma menina que, só pode ser parenta do Viriço, que , como já contei, conseguiu plantar uma goiabeira na corcunda de um boi!
A menina plantou uma roseira, que morreu, causa mortis saudade.
Mas a roseira, querendo se eternizar no seu coração, transformou-se num pé de caju.
Eu acho que esse caju não precisa de terra não, ele precisa só de amor e muita atenção.
É capaz de ele crescer e ser o primeiro cajueiro etéreo do mundo!
Mas, se ele aceitar outra companhia, que a não a sua, dou-lhe de bom grado um pedaço de chão, sem a burocracia da reforma agrária. Não precisa nem se vestir de vermelho, nem hastear a bandeira na minha porta.
Em frente ao meu quarto, assim terei muitos sonhos perfumados.
Sim, na minha opinião, quem pensa que perfume francês é o melhor perfume do mundo é porque não sentiu ainda o aroma da flor do caju. São flores pequeninas, rosáceas, delicadas, dotadas de uma essência indecifrável.

Recado do Dia

Homem que não comparece perde a preferência e abre a concorrência!

Assim me ensinou umna mulierius sapiens.

terça-feira, 17 de abril de 2007

ki kaki karo

Quem já viu um caquizeiro? Eu nunca vi! Mas todo dia, atravessa o meu caminho um vendedor de caqui. Ele me espera no semáforo, sob o sol quente. Penso que ele sente sede e vontade de comer os caquis que ele põe à venda. Mas, ele, como um monge, disciplina sua vontade, pois afinal nem só de caqui pode viver um homem.
O fruto é originário da Ásia, li. E existem três tipos: o taninoso, o doce e o variável. Taninoso, não me pergunte o que é porque não sei; e o dicionário não responde. "taninoso é o que contém tanino." Diz o Houaiss. É óbvio. (Isso parece resposta de aluno preguiçoso.)
Creio que o tipo que é vendido aqui é o "doce". É suculento, redondo, vermelho como um tomate. Para o meu paladar, tem um sabor silvestre.
Eu comprei os caquis porque o rapaz estava ali, porque eu estava com fome e porque eu trabalho com quatro yanomamis. (Com todo respeito à cultura desse povo.)
Os meus quatro colegas não trazem nada de comida. (Mas comem que é uma beleza!) Na cultura yanomami, os homens fabricam arcos e flechas para caçar; as mulheres cultivam a terra, plantam, colhem os frutos.
Por não trazerem frutas e esperarem que eu, a mulher, providencie tudo, eu os apelidei carinhosamente de yanomamis.
O preço do caqui não é nada comparado com o preço da multa que eu vou ter de pagar. (Tomara que não.) Na hora em que fui comprar os caquis o sinal amarelou. Avancei, o sinal ficou vermelho. Havia um pardal mal educado que, em vez de comer os caquis, fica fotografando quem fura o sinal.
Contei para o meu colega, ele exclamou:
- Kara, ki kaki karo!

segunda-feira, 16 de abril de 2007

A TV não dá flores!

Dudith, não é Judith, é Dudith mesmo, é uma moça que conheci parecida com a deusa Ceres. A deusa das plantas que brotam e do amor maternal e que era representada com dois pendões de trigos sobre as orelhas, como brincos grandes.
Como a deusa romana, Dudith tinha a mão boa para plantar.
No dia em que a conheci, ela estava cuidando do seu jardim, juntamente com seu assistente, um deus menor, chamado Adam, um menino de quinze anos. Eles me convidaram para ocupar essa função, o que aceitei de imediato.
Enquanto cultivávamos aquele pedaço de chão, conversávamos. Conversa vai, conversa vem, ela me conta o seguinte:
- Hoje de manhã, a nova vizinha veio me visitar, a que mora nessa casa do lado direito.
- Esta que, no lugar de um jardim, tem um montão de lixo? - Indaguei com ironia. - Sorrindo, Dudith respondeu:
- Exatamente. Eu perguntei pra ela se, por acaso, ela não queria fazer um jardim, pois eu tenho muitas mudas, como você pode ver, e tenho muitas plantas que brotam de galho. Disse-lhe que o meu pequeno viveiro estava a sua disposição.
Continuou Dudith:
- Acredita que ela, fazendo uma cara de preguiçosa, rebateu:
- Ah, dá muito trabalho, não sei. Vou perguntar ao meu marido!
- Parece até que eu estava oferecendo "merda" pra ela. - Comentou Dudith com certa indignação. - Eu, sabendo que a mulher era religiosa, resolvi apelar e disse-lhe em tom profético: "Você sabia que na sua casa tem uma maldição?! A moradora anterior à última invocava forças demoníacas! Para tirar essa energia ruim você deve plantar umas..."
A vizinha, interrompendo-me e fazendo uma cara de pouco caso, disse:
- Ah, mas nós somos evangélicos! Na hora em que nós entramos numa casa, nós repreendemos tudo de ruim, em nome de Jesus!
Deu-me vontade de dizer:
- Pois repreenda esta preguiça!
Quando ela saiu, Adam comentou:
- Quem ver a crença dela vai salvar o mundo! Só porque ela é crente já se acha livre de qualquer infortúnio.
Pois é, o terrorismo que fiz com a vizinha foi inútil.
- Que nada, serviu para nós darmos essas risadas. - Comentei.
- O certo é que, no lugar de plantar uma árvore, ela plantou uma antena de tv bem alta. Vai ver que a antena vai dar frutos! - Continuou Dudith.
- Mas, a tv não dá flores! A tv vende flores. - Disse Adam, com certo orgulho de seu senso crítico.
- Vai ver, ela gosta de comprar! - Concluiu Dudith.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Corajoso Viriço

O Viriço era muito corajoso. Vaqueiro, peão, boiadeiro, lavrador, carpinteiro, pescador, caçador, plantador, etc. Pelo que contava, era mais valente que Lampião. Homem da sua estirpe tinha que "ser um forte"!
Quando via um cemitério ficava mais firme no lombo do burro do que prego enfiado em barra de sabão.
Uma certa noite, ele viajava sozinho montado no seu burro. Era uma noite muito escura e a estrada era solitária. Por ali, só passava quem tinha algum negócio importante pela região, ou seja, quase nenhuma pessoa.
O burro seguia a galope, diminuiu a velocidade para um xote, depois, passou a caminhar pé ante pé. Naquele passo macio, o Viriço caiu no sono.
Não dormitou muito, pois logo caiu do burro, e este, vendo-se livre de sua carga, resolveu pegar o seu próprio rumo.
Quando o Viriço percebeu, o burro estava bem adiante, esturrando os lábios, celebrando sua liberdade.
-Péra aí, seu filho d'uma égua!
-Eu sou filho d'uma égua mesmo! - Respondeu-lhe o burro, relinchando de alegria. - E não lhe espero não!
- Espera não, mas eu te pego, seu filho d'uma vaca!
O Viriço meteu o pé na carreira, mas, a cada passo que dava, metia o pé num toco, e era tanto toco que seu pé já estava esfolado.
- Que monte de toco é este, seu burro?! E está tudo pintado de branco!
- São cruzes do cemitério, seu Burro!
O Viriço, mal ouviu essa notícia, mais firme do que vara verde, recuou assombrado.
Porém, no outro dia, ele contou o seguinte:
- Rapaz, quando eu notei, estava no meio do cemitério, chutando as cruzes. As ditas almas, donas dos marcos, apareceram muito zangadas comigo. Corri atrás, elas fugiram com medo e se enfiaram pelos buracos no tronco de um oiti.
Ah, se eu pego uma daquelas almas, que eu lhe arrancava pelos cabelos os segredos do céu ou do inferno!

Comentário do Beija-Flor

Li para o beija-flor o Adendo à Declaração Universal dos Direitos Humanos e, encorajado, ele disse o seguinte para o chimpanzé:
- Ô, seu chimpanzé, vc fica dizendo que tenho uma língua comprida e nem tenho topete e que, por isso, não sou bonito! Pois vou lhe dizer uma coisa: o interessante da beleza não é a perfeição. Mas ser belo, apesar de não ser belo não.
- Que coisa complicada, seu beija-flor. Para mim ou se é isso ou se é aquilo!
Essa declaração assombrou o chimpanzé mais do que o fato de o beija-flor ter carregado o seu pesado balde de água.

Adendo à Declaração Universal dos Direitos Humanos

Todo homem tem direito de ser belo, não obstante seus defeitos, desde que tenha o coração puro e a alma livre.

Meditações do Beija-Flor

- Não entendi por que o chimpanzé me chamou de doido! Só porque o ajudei a carregar um balde d'água! O natural seria que ele dissesse: "obrigado!"
Eu vi o beija-flor contemplativo, meditando sobre essa importante questão e resolvi pensar também sobre o assunto.
Depois de pesquisar nos meus grãozinhos e de fazê-los trabalhar um pouco, cheguei à seguinte especulação:
- Toda vez que alguém faz algo que representa uma grande generosidade, algo inesperado, algo estupendo, como diria um espanhol, logo é chamado de louco.
Mas, por outro lado, ser chamado de louco por essa razão é algo delicioso!

quarta-feira, 11 de abril de 2007

O Beija-Flor, o Sagüi e o Chimpanzé

O chimpanzé arranjou um emprego de auxiliar de jardineiro.
Todos os dias, ele carregava dezenas de baldes de água. Dois de cada vez, um em cada braço. Mas, ele não reclamava, pois, assim, ganhava um dinheirinho pra comprar a sua ração, umas bananas, uns coquinhos. Quando chegava 13º, ele ficava morrendo de felicidade. Ia ao shopping, (shopping popular, diga-se.) Comprava damascos cristalizados, chocolates e até presente de natal para os seus filhotes, que eram muitos.
O que lhe incomodava era ver o beija-flor voando, livre, pra lá e pra cá, batendo as asas, colhendo o néctar das flores, enquanto ele tinha que trabalhar de sovaco molhado.
(Isso lhe dava um odor horrível.)
- Ah, beija-flor magrelo! Nem tem topete e é um linguarudo! Tem uma língua feia, comprida e bifurcada! - Disse o chimpanzé, olhando muito bravo para o beija-flor que acabava de passar.
O sagüi, que estava no tronco da árvore predileta do beija-flor, respondeu:
- Ora, seu chimpanzé, deixe de ser mané, e pare com essa inveja! Deixe-me lhe perguntar uma coisa: o senhor foi caçar?
- Não. Por quê?
- Porque está cheirando a gambá!
O chimpanzé fungando num sovaco e noutro, respondeu:
- Deixe de ser maldoso, seu sagüi! Não é porque cê tá amasiado com o beija-flor que passou a cheirar bem. Meu cheiro é igual ao seu!
O sagüi, dando risada do mau-humor do chimpanzé e tapando o nariz para se proteger do mau cheiro, disse com voz fanhosa:
- Ah, desculpe, seu chimpa, é o cheiro do queijo parmesão que o rato acabou de roubar! Olhe ali, ele está entrando na toca! - Enquanto o chimpanzé se virou para ver o rato, o sagüi aproveitou e fugiu.
Chimpanzé correu, largou o serviço e foi procurar o queijo, mas não havia queijo, nem rato algum. Por causa disso, atrasou-se. O orangotango, que era o chefe da repartição, apareceu e lhe deu uma carraspana.
- Seu chimpanzé, chega atrasado e ainda fica nessa enrolação!
Ficando mais amarelo que um canário, ele pegou os dois pesados baldes de água do chão. No mesmo instante, surgiu o beija-flor, que levou um dos baldes para ele até o canteiro.
O Chimpanzé, sorrindo, de repente, exclamou:
- Esse beija-flor é doidinho!

domingo, 8 de abril de 2007

Garimpeira

Fernando Pessoa disse: "eu sou o guardador de rebanhos." Seu rebanho estava nas nuvens.
Ah, se eu pudesse escolher um ofício seria garimpeira. Sairia garimpando os tesouros que estão por aí.
Hoje saí para garimpar. Encontrei tantos tesouros que terei que omitir alguns.
Primeiro, encontrei um menino embolado numa rede amarela em cima de uma árvore. Eu o cumprimentei. Ele é meu amigo, mas nem sabemos o nome um do outro. Eu gritei por ele, ao que ele se desenrolou da rede muito sorridente e foi logo me contando uma história.
Disse que o meu cãozinho, o filhote da cachorra dele, o que eu havia escolhido, havia morrido. Notícia que me deixou muito triste. Explicou que eu fui infeliz em escolher o filhote mais magrinho e tímido, que vivia longe da ninhada. Eu lamentei, perguntei se ele havia chorado tal tragédia, mas ele me disse que não. Que pena! E imaginei um funeral para o cachorrinho. Mas ele já não estava mais ali.
Depois passei numa casa, onde havia inúmeras crianças e vi dois meninos iguais, guiando juntos um carrinho. Eles eram os seres mais lindos do mundo, morenos, olhos azuis, cabelos escuros e lisos. Depois conheci outro irmão deles. Era loiro dos olhos verdes, devia ter uns cinco anos. Por último conheci o quarto menino, o mais velho de todos e era bonito também.
Porém, os gêmeos eram os mais encantadores, magrinhos, com aqueles olhos azuis parecendo dois faroletes em contraste com o cabelo escuro.
Segui adiante. Desci o vale, passei pela cachoeira que não pode ser vista, mas ouvi a queda d'água, derramando-se tranqüila, harmoniosa, despreocupada de tudo em volta.
Mais adiante, encontrei o Gabriel, sobre quem fiz uma aposta com o meu sobrinho para adivinhar o nome. Eu gritei:
- Gabriel!
Ele respondeu:
- Oi!
Meu sobrinho ficou abismado porque acertei de primeira!
Gabriel tem três anos. É meigo e carinhoso como toda criança bem-amada.
Prossegui, depois de uma afável troca de palavras e juras de amizade.
Parei numa construção feita de bambu e concreto, local que eu nunca vi gente e que sempre despertou a minha curiosidade. Ouvi um barulho e vi que hoje, os supostos donos estavam lá.
Aproximei-me de um limoeiro que fica nos fundos e, como pretexto para conversa, eu pedi um limão.
O dono, que era um japonês muito simpático, concluí depois, autorizou-me a pegar quantos limões quisesse. Vendo sua simpatia, perguntei se podia entrar e ver a construção.
E lá encontrei um lindo tesouro: a Luíza, uma menina de quatro anos, alegre e comunicativa. Ela foi logo me contando tudo de seu fim de semana, chamando-me atenção para uma flor que, segundo ela, iria se abrir dali a um instante. Ela tinha duas irmãs mais velhas do que ela: Clara e Alice. A primeira era tipicamente japonesa, a Alice era mais para branca, como a mãe. E Luíza, era bem mestiça, mas bem diferente dos pais, que eram corteses, porém pouco conversadores. A Luíza, tenho certeza que, em tempos longínquos, fora minha filha.
E na volta, "tinha uma pedra no meio do caminho", olhei para trás, mas não vi Drummond. E, notando que nenhum outro poeta se interessaria pela pedra, retirei-a do meio do caminho para que ninguém nela tropeçasse.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

O dia em que segurei um anjo no colo

Eu gostaria de contar esta história para um rapaz que me escreveu chamando-me "mulher-anjo". Ele me escreveu o seguinte: "Eu vi a mulher-anjo! E ela..." E completou dizendo que gostaria de estar do lado de sua filha para vê-la enrubescer quando lhe contasse que viu a "mulher-anjo". Mas eu tenho ciência que não pertenço a essa categoria de seres superiores.
Mas hj me foi dada a oportunidade de ter um anjo no colo e vivi um dos momentos mais emocionantes de minha vida.
Infelizmente, por trás dessa emoção, há uma história triste.
Era uma e meia da tarde de hoje, o sol estava a pino, o asfalto do estacionamento exalava calor, quando avistei uma multidão reunida em torno de um carro. Curiosa como sou, (não há etiqueta que reprima a minha curiosidade, ainda bem), eu fui verificar o que era. Juntei-me aos muitos que estavam ali e fui logo perguntando para o primeiro que encontrei:
- O que aconteceu?
- Duas crianças estão presas neste carro desde esta manhã!
Meu coração deu um salto, aproximei-me do carro, que, além de preto, tinha o vidro escuro, e vi as duas crianças lá dentro. Um menininho sentado na sua cadeira e do outro lado um bebê que mal dava para ser visto. O menininho me avistou e atirou suas mãozinhas para minha direção. Até hj ninguém dirigiu para mim um apelo mais pungente.
De repente, vi que havia policiais armados e que todos gritavam: arromba a porta, arromba.
Do outro lado, havia um homem, que eu não sabia quem era, que pedia calma, que pedia pra esperar que a chave estava chegando, não sei o que mais...
Uma fúria tomou conta de mim e eu investi com palavras contra esse homem. Protestei que as crianças tinham que ser socorridas imediatamente, que ele não podia contrariar a autoridade policial. O homem se virou para mim e disse:
- Cala a boca! Vc não sabe com quem está falando!
Eu fiquei mais furiosa e toda a multidão se juntou a mim para me proteger, pois o homem estava descontrolado.
O homem não queria que quebrasse o vidro do carro. E a maior surpresa estava por vir. Realmente eu não sabia com quem falava, jamais imaginei com quem falava.
Quando eu soube da identidade do homem veio o verdadeiro choque: ele era o pai das crianças!
Como podia ser ele o pai?!Todos se olhavam com esta pergunta nos olhos. Como podia estar preocupado em não estragar o seu carro!
Um homem que guarda os carros no estacionamento, vendo que os policiais hesitavam, apresentou-se com uma pedra imensa e declarou:
- Se vocês, policiais, não quebram o vidro, eu arrebento esta porta agora.
No mesmo instante, ouviu-se um estampido e o policial rompeu a fechadura da porta.
- Pronto! - Alguém gritou com alívio.
Eu estava bem perto do carro, libertei o menininho do cinto, e o tirei dali. Ele estava quente, molhado de suor, o rosto vermelhinho e cheio de bolhas, chorava, mas não tinha mais lágrimas. Agarrou-se ao meu pescoço com tanta ternura como se eu fosse a sua mãe. Do outro lado, estava o bebê de colo. A sua mãe o pegou, ele não esboçou reação.
O menininho que segurei devia ter uns dois anos, tinha os cabelos castanhos em forma de cachos. Era um anjo, tenho certeza.
Entreguei-o à sua mãe e saí dali com o coração cheio de lágrimas.
Sim, e o homem, que era o pai das crianças, saiu dali algemado.
Como disse Frei Beto: Tens o poder de ser o anjo ou o demônio da terra.
Então escolhe!

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Pode ser sorte ou pode ser azar!

Quem não leu um continho intitulado com esse nome? Tem um fundo moral bastante simples.
A história conta mais ou menos o seguinte: um menino desejava muito ganhar um potrinho. Um belo dia, aparece um potrinho sem dono na porta de sua casa. O vizinho veio parabenizar o pai dizendo que ele tinha um filho muito sortudo. O pai respondeu:
- Pode ser sorte ou pode ser azar!
O menino cuidou do potrinho e quando este virou cavalo, sumiu. O vizinho, de novo, apareceu e disse:
- Seu filho é uma azarento! Depois que alimentou o potrinho e que se torna um cavalo bonito, ele foge. O pai respondeu:
-Pode ser sorte ou azar!
Em resumo, num lindo entardecer, o cavalo do menino retornou e trouxe consigo um bando de cavalos selvagens, que o menino amansou e os tornou seus.
Ora, toda essa história é pra contar do meu azar ou sorte de hoje.
De manhã eu tinha 30 reais no bolso. Dei 20 para o meu sobrinho e o restante para o homem que limpou o meu carro. Eu lhe devia apenas cinco, mas ele não tinha troco, então deixei pra lá.
Resultado na hora do almoço, aliás, já passava da hora do almoço e eu estava estrábica de fome. Depois de caminhar um km até o caixa do banco mais próximo do restaurante lá havia a linda mensagem: "saque indisponível". Logo pensei: Ah os meus cinquinhos reais!
O restaurante é daqueles que não aceita cartão, nem débito, nada de plástico. Enquanto isso, eu amaldiçoava esse maldito dinheiro de plástico, que não pode ser comido.
Dirigi-me para o outro local onde havia outro caixa, andei mais 1km. Chegando lá havia uma fila imensa, pois só um caixa funcionava. Eu fui logo avisando pra um que achou de meditar sobre a vida justamente ali:
- Pessoal, vamos ligeiro porque eu estou com fome e estou precisando de dinheiro pra almoçar.
O moço de gravata e terno preto da fila, cara cheia de espinha e muito mau humorado olhou para mim com ar de desprezo. Eu me virei pra ele e disse:
- Moço, vc acha que eu estou magra assim por quê? Porque estou há três dias sem me alimentar e hj a minha fome veio pra valer! (rs)
Os bem-humorados riram. O homem sério continuou sério. Imagino que aquele nó ao pé de seu pescoço era um antídoto contra o riso.
Quando eu entrei no elevador havia a seguinte frase: "Mude seus pensamentos e mudará seu mundo." Eu pensei: não há pensamento que faça eu mudar meu mundo enquanto eu estiver com essa fome. Não há pensamento que passe essa fome. Logo concluí que aquela era uma frase dita por quem nunca passou fome. Sequer uma fome temporária feito a minha.
Finalmente comi minha raçãozinha e voltei satisfeita da vida!
Mais ou menos, pois fiquei esperando um tempão pelo elevador.
Estava eu ali esperando, quando vejo chegar o menino mais bonito do ano! Neste ano ainda não vi outro mais bonito. (E ele paquerou comigo!)
Pois é, pode ser sorte ou azar!