Quando se quer escrever um diário não se pode confiar na memória, muito menos em papéis avulsos! Eu já sabia o quanto a primeira nos confunde, porém que os papéis tinham vida e saíam voando por aí, feito pássaros que se libertam da gaiola, eu não sabia! Foi o que os meus papéis avulsos fizeram! Agora eles devem estar em Buenos Aires, Deus sabe em que mãos, mais provavelmente numa lixeira.
Graças à memória da Jô, minha amiga e companheira de viagem, é que posso afirmar: mal vi a beleza de Buenos Aires, desmaiei na cama do hotel. Que disposição! Que sublime! Mas, considere, foram quatorze horas de viagem. É a duração do percurso Pelotas – Buenos Aires, feito de ônibus, isto quando não há nenhuma confusão aduaneira. Dependendo do “humor” dos fiscais da aduana do Uruguai, podemos ficar por horas nesses divertidos paradouros, segundo me informaram.
O nosso hotel ficava na rua Lavalle, cruzando com a famosa Florida, uma rua larga, exclusiva para pedestre. É muito bonito ver de longe milhares de silhuetas de cabeças escuras. Pareceu-me que a maioria da gente de Buenos Aires tem cabelos escuros e a pele clara.
Iniciamos nosso passeio por essa rua. Havia neblina e frio, mas o som do tango ecoava caliente e glamouroso e, como um magneto, nos atraiu. Não encontramos um tocador de bandonion, mas um simpático argentino que colocava os CD no aparelho de som numa loja localizada ali perto e que se tornou nosso amigo. Ouvimos a música e analisamos os preços. Estavam razoáveis, por volta de $20 (vinte) pesos, o que correspondia a pouco mais de quatorze reais. Mas não compramos nada, primeiro tínhamos que ir à casa de câmbio.
Sim, pois para duas calculistas como nós, quer dizer, duas pessoas que vivem exatamente de fazer cálculos, sabíamos que era mais econômico comprar pesos. Fiz as contas: para comprar um dólar no Brasil pagamos R$ 2,07 reais. (Roubaram-nos!) Com os mesmos reais se comprava em Buenos Aires 2,90 pesos, ou seja, iam faltar dez centavos de pesos para comprarmos o mesmo dólar, uma diferença de sete centavos de reais! (Um dólar valia três pesos argentinos.) Logo, se observássemos os preceitos de nossa profissão, se fôssemos verdadeiras calculistas, teríamos comprado dólar suficiente no Brasil.
Dirigimos-nos à dita casa de câmbio. A rua estava um formigueiro. Havia muitos argentinos, pero el sonido de su idioma era sufocado pela voz dos brasileiros, que pareciam ter tomado de assalto a rua inteira. Uma verdadeira ocupação territorial! Talvez somente na rua 25 de março (São Paulo) fosse possível ver tanto brasileiro desfilando junto!
Chegamos na casa de câmbio. Por sorte não havia ninguém na fila. Entregamos nossos reais e pedimos pesos. Houve um pequeno problema, nossas para sempre extraviadas carteiras de identidade foram solicitadas. Sem estas nada feito!
Como narrei anteriormente, eu e minha amiga viajamos como clandestinas justamente por não ter esse documento indispensável a qualquer cidadão. De repente, a fila da casa de câmbio cresceu! Estávamos ali como dois automóveis quebrados, congestionando o tráfego.
– E agora?! – Perguntei à Jô, como se ela tivesse a solução para tudo. Embora eu soubesse que no final sobraria para mim! As coisas mais inconvenientes ela sempre deixou a meu cargo, assim como eu deixo os problemas que envolvem gente da alta para ela. Desse modo, comunicar-se com as pessoas sem as cerimônias oficiais cabia a mim.
Restava-nos duas opções: comprar pesos no mercado paralelo ou se virar para um brasileiro e pedir, com a cara mais limpa do mundo, que comprasse a moeda para nós. Foi o que fiz. Voltei-me para a moça que estava atrás de nós. Fiz uma análise de seu perfil a la dona Elaine, a que adivinha o caráter, e vi que ela não recusaria meu pedido. Então, dirigi-me a ela com meu mal castellano, assim:
– Acaso se llama Michelle?
– Sí.
Ela me respondeu com um sorriso de surpresa.
Bem, eu esperava que ela dissesse “não”, assim eu diria: "porque eu pensei que fosse a Michelle Pfeiffer!"
Esse plano eu imaginei depois. Por sorte, ela era nossa colega de viagem. Se não a conhecêssemos sairíamos dali com o rabinho entre as pernas e iríamos direto para a banca do fulano que vendia pesos sem burocracia, que se dava apenas ao trabalho de virar as notas de reais contra a luz, pois não queria receber cédulas falsas. Eu mesma encontrei mais tarde uma moça com uma nota de cinqüenta reais que ele recusou. Mas é verdade que a moça se chamava Michele e que se parecia com a Pfeiffer.
Depois que ela nos comprou os pesos, tive a cara limpa de lhe dizer isso, ao que ela me respondeu:
– Minha mãe queria que eu fosse parecida com a Michelle Pfeiffer.
– Desejo de mãe é poderoso!
Concluí, despedindo-me. Em seguida pensei: minha mãe também gostaria que eu me parecesse com a famosa atriz, porém não deu efeito nenhum sobre os meus traços!
Ainda não havíamos almoçado. A comida é uma das coisas mais convidativas de Buenos Aires. Por favor, não vá pensando que eu sou uma morta de fome! Comida também é cultura! Há gente que viaja para lá somente para comer e outros somente para comprar. Juro que viajei com o propósito de ver como ficam os plátanos e os álamos no final do outono!
Estava escrevendo sobre a comida. No fundo, acho que o relato dessa confusão era dispensável, o que não podia deixar de escrever era sobre a comida de Buenos Aires! Não há adjetivos que possam descrever o seu sabor! É divina!
Os restaurantes, com seus janelões e portas de vidro, deixam ver tudo da rua: os clientes comendo, os pratos fumegantes, as mesas postas, a carta de vinhos, talvez justamente com o propósito de fazer quem passa por ali ficar com água na boca.
Vi um sujeito mais concentrado do que noiva na hora do casamento diante de um prato. Vi quando ele levou a carne à boca e a mastigou. Naquele momento, desenhou-se em seu rosto uma expressão de profundo prazer. Foi o suficiente para que eu retornasse àquele restaurante e pedisse o mesmo prato. Decorei o endereço, rua Corrientes, 499, Restaurante Pétalo.
A Entrada
Pedimos uma entradinha para acalmar nossos estômagos demasiados ansiosos: um empanado petalo (de presunto e queijo) e outro de frango.
Estava um primor, um verdadeiro brinde.
O Prato Principal
Medallón de lomo (filé) para compartir: lomo al champignon: cebolla, mantega, vino, crema, champignon, demiglacé y papas pela bagatela de $35,00 pesos.
O problema era o preço da água. Uma garrafinha por quatro pesos! Dá vontade de exportar água para a Argentina. Que caro! E o cafezinho é a mesma coisa.
Para que não saíssemos do restaurante com vontade de dormir, tomamos um cafezinho y gracias. Sem direito à sobremesa. Estávamos com os cinco sentidos satisfeitos e não agüentávamos mais tomar nem corrente de ar.
Grande Final
Antes de sair, eis que derrubo o porta-guardanapo, o que fez um barulho estridente. Dei um susto nos fregueses que aguardavam o prato. Os que estavam comendo nada viram, por supuesto...
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário