terça-feira, 10 de julho de 2007

A Mulher que Vendou os Olhos

Você me pergunta por que uso esta venda nos olhos. Não sou cega. Nem tenho os olhos feios. Asseguro-lhe que são belos. Foi obra de um demônio. Por isso se um dia um demônio lhe procurar e soprar no seu ouvido a verdade, fuja. Não lhe dê ouvidos.
Não faz muito tempo, um desses seres me procurou e perguntou se acaso eu não quereria saber a verdade.
- A verdade sobre o quê? - Indaguei.
- Sobre o céu e a terra.
- Não. É conhecimento demais para minha cabeça. - Recusei. - Quero apenas a verdade sobre os homens.
O demônio sorriu com ironia. Observou-me por algum tempo com ar paternal, depois advertiu:
- Não podeis modificar as opções feitas em datas anteriores.
- Demônio, não me fales por enigmas, seja simples que entendo pouco mais que nada de filosofia. Queres a minha alma em troca?
- O que é isso?! - Ele retrucou meio indignado.
- Sequer pedes minha alma? Então desembuche logo. Diga a verdade sobre os homens que estou louca para descobrir o que se passa dentro deles.
O demônio desapareceu. Segui sozinha pela estrada, andando apressada, na expectativa de que a verdade me fosse revelada. Mas nada havia mudado debaixo do céu.
- Tudo o que o demônio disse não passa de uma brincadeira!
Estava chegando a essa conclusão quando entrei na curva do caminho. O cenário tornou-se espantoso. O céu escureceu, as árvores secaram, as flores dos arbustos murcharam. Ao longe, avistei um homem sem cabeça. A coisa mais inverossímil do mundo era que ele estava vivo e trabalhava! Sentado numa poltrona, observando-o, havia um outro. E, para meu espanto, ele comia a cabeça do primeiro.
- Ei, não faça isso! Não sabe que não pode comer um outro homem?!
O dito cujo avançou na minha direção como se quisesse me agarrar. Fugi sem olhar para trás.
Quando me vi livre, comecei a xingar aquele demônio. O que ele queria me dizer com aquilo? Queria me assustar! Agora devia estar dando risadas. Só queria se divertir às minhas custas!
Para minha sorte ou azar, avistei uma linda casa onde havia um rapaz afiando uma foice. Pareceu-me uma pessoa normal. Pelo menos possuía a cabeça no lugar.
- Boa tarde.
Cumprimentei-o, mas ele não deu resposta. Passou os dedos pelo gume do instrumento e, olhando por cima da minha cabeça, esbravejou:
- Voltem. Escondam-se, monstrinhos.
Virei-me e encontrei dois seres diminutos, da estatura de uma criança, cujas faces eram cansadas e envelhecidas. Vinham trazendo nas costas pesados sacos de batatas. Obedecendo ao sujeito, eles caíram por terra.
- O que é isso? Poderia me explicar?
O homem, em vez de responder, girou um laço com o qual me prendeu.
- Tudo o que entra na minha propriedade me pertence.
Ele disse, amarrando-me como um cão no tronco de uma árvore.
Vivi um longo tempo na companhia dessa criatura que para ser o diabo só faltava morar no inferno. Mas, não. Ele morava num lugar aprazível, um lugar cheio de árvores e pássaros cantores.
Os seres que ele mantinha como escravos agrediam-me. Eu prometia libertá-los em troca de sua ajuda, porém, eles não acreditavam. Atiravam-me pedras, chutavam-me ou me mordiam.

Uma noite, desceu sobre mim uma ave gigantesca e com seu bico ela desatou o nó que me prendia à árvore. Estava livre!

O meu algoz dormia. As duas criaturas também. Eu deveria ter fugido dali o mais rápido possível, mas a curiosidade fez com que eu desse uma espiada na casa.

Era uma morada muito rica. Havia muitos objetos estranhos, porém, nada me estranhou mais que três corações expostos dentro de uma cristaleira. Um deles era grande, os outros pequenos. Toquei-os. Eles pulsavam! Parti assustada.

Lembrei-me do homem da estrada. Voltei lá e encontrei-o dormindo numa esteira. Arranquei das mãos do canibal a cabeça e a coloquei nos ombros do dono. Sentindo o seu crânio no lugar, ele acordou. Levantou-se com muita disposição.

- Finalmente posso sorrir! Posso falar!

Ele disse de um jeito exultante. Arrumou as suas coisas e fugiu.

Fiquei para trás. Ia caminhando devagar pensando sobre esses acontecimentos quando dei de cara com o dito demônio, que me indagou:
- E aí? O que está achando do jogo?
- Se eu quisesse ver um filme de terror, comprava o bilhete!
Parti contra ele com unhas e dentes. Ele fugiu dando risada e ainda teve coragem de repetir a advertência inicial.
Assim, já não tenho mais opção. Sou obrigada a ver a verdade. É por isso que uso esta venda nos olhos.

A mulher terminou de contar sua história e, para surpresa de todos, retirou a venda. Seus olhos eram como o farol de Alexandria. Porém, a platéia mal teve tempo de contemplá-los. Apavorada, aos gritos, tapou os olhos. Ninguém sabe o que ela viu.

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