terça-feira, 31 de julho de 2007

Biografia não autorizada de Wellson X., vulgo Uelsão

Prólogo:
Devo explicar que o texto abaixo foi escrito como exercício literário proposto pelo professor da oficina literária de que participo. O exercício consiste em escrever uma biografia difamatória como o fez o escritor argentino Jorge Luis Borges na obra "História Universal da Infâmia".
O nome verdadeiro do "escolhido" não pode ser revelado.

Wellson X. ou Uelsão, como gostava de ser chamado, era o radialista do programa mais ouvido pelas empregadas domésticas do Distrito Federal e entorno, segundo atestou um famoso instituto de pesquisa. Depois de consultar umas trinta representantes da categoria e ouvi-las repetir o nome do programa como o seu predileto, o instituto anunciou essa descoberta científica.
Aproveitando a deixa, Uelsão passou a se identificar não só com as mulheres que exerciam aquela função, mas com o sexo feminino como um todo. Foi aclamado por uma centena de dondocas e outras pessoas da elite como benfeitor do povo porque teve a feliz idéia de criar uma escola para formar empregados domésticos, jardineiros, limpadores de piscinas, puericultores e outras especialidades congêneres.
Porém, como ninguém acha que precisa estudar para exercer essas ocupações, a idéia nunca saiu do papel. Alguns se interessaram em saber o que era puericultura, mas quando descobriram que significava cuidar de crianças, ou seja, o ofício de babá, desistiram de entrar na futura escola.
Sempre preocupado com a dignidade humana, Uelsão começou a distribuir dentaduras. Para isso, investiu a bagatela de dez mil reais, o que deu para comprar cerca de trinta mil das famosas chapas, além de dez mil pares de chinelos. Candidatou-se nas eleições seguintes ao cargo de Deputado Distrital e obteve cerca de onze mil votos.
Uelsão, mesmo eleito, reclamou:
- Fui traído pelos banguelas! Nem metade votou em mim. Que povo ingrato!
Completou dizendo palavrões impublicáveis.
Uelsão proclama aos quatro ventos que seu destino é viver próximo ao povo humilde, por isso mora numa região onde há bastante jardineiro, cozinheira, copeiro, faxineiro, passadeira, pedreiro. Trabalhando, diga-se. Gente humilde habitar ali, só se for na casa dos fundos!
O deputado conta que a sensibilidade é a marca de seu caráter. Prova isso a sua última boa ação. Doou, como se fosse seu, um terreno público para uma gente que não sabia que seria chamada de "invasores".
Depois de todos os esforços das autoridades para expulsá-los de lá sem obter êxito, Uelsão mandou um testa-de-ferro comprar a troco de vintém uma dezena de lotes. Lá construiu um supermercado. Seu empreendimento está lhe rendendo dez vezes mais que os proventos de deputado.

domingo, 29 de julho de 2007

Um Amor de Poeta

Elisa estava hospedada na antiga Fazenda Sacopenapan. Como quase todos os hóspedes, ignorava que ali havia sido uma fazenda e que os tupis designavam-na como "o barulho e o bater dos socós". Se pudesse sentir os odores de mais de três séculos, sentiria cheiro de estrume, de capim e de leite fresco. Escutaria o ronco do Atlântico, soberbo, imenso e o canto dos socós. Porém, o que ouvia era o barulho dos automóveis, o ruído das roldanas do elevador, o ranger do metrô freando na estação Cantagalo. Se quisesse ouvir o estrondo da maré teria que andar por suas franjas e apurar bem os ouvidos.
Ia andando em direção à Lagoa Rodrigo de Freitas, hipnotizada por uma estrela, que apontava naquela direção, quando se encontrou com o poeta. Estava sentado com as costas para o litoral rabiscando um caderno. Sem pedir permissão, sentou-se ao lado dele.
Depois de alguns instantes de suspense, o poeta levantou a vista e sorriu timidamente admirando aquela moça que ousara sentar ao seu lado e, ainda por cima, olhar indiscretamente em direção às páginas de seu caderno. Ela agiu com naturalidade, sorrindo ao mesmo tempo em que sacudia uma perna e olhava com o canto do olho para ele, fingindo que admirava a estrela.
Uma menina, que não estava na história, viu Elisa sentada ao lado daquele senhor e, não se agüentando de curiosidade, perguntou:
– Ei. Ele é seu namorado?!
– É.
– E faz tempo?
– Muito tempo.
– Deve ser muito rico!
A menina concluiu e se foi.
O poeta continuou em silêncio, mas Elisa percebeu um indiscreto rubor em suas faces. Ele era tão tímido. Parecia um menino. Melhor seria ir embora sem dizer palavra! Mas sair de perto dele não era fácil. Sua presença suscitava a velha Sacopenapan com seus casarões e seus imponentes jardins; fazia a maré subir e cantar uma canção límpida, a brisa correr solta e subir pelas montanhas.
Elisa pôde sentir por um instante os secretos odores guardados há séculos pela atmosfera e, num devaneio, abraçou o poeta. Ele deixou-se abraçar.
– Você não tem vergonha de namorar esse velho?!
Era a mesma menina que surgira de repente como se estivesse esperando aquele momento para entrar em cena.
Elisa levantou-se, arrumou os cabelos. Um fio escapou e caiu sobre a página que o poeta estava escrevendo. Ele acariciou-o entre os dedos, enquanto observava a sua companhia se afastar. Felizmente, ela não viu essa manifestação de carinho do poeta, senão teria ficado com ele para sempre.
Não demorou muito tempo, o poeta morreu. Fizeram a sua escultura. Colocaram-no sentado, voltado para a terra, com um caderno na mão, no mesmo lugar e na mesma posição em que estava naquele dia, mas esqueceram de esculpir a companhia que o poeta repentinamente amou.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

As Aventuras de Harry

Antes que se falasse em Harry Potter, eu já havia batizado o meu Harry. Só para ficar chamando-o feito uma dama inglesa: Harry, Harry!

O meu Harry não é bruxo, nem entende de mágica, nem de trouxas. É pacífico, tranqüilo e sua maior aventura é poder dormir no sofá enquanto estou no trabalho.

Chego em casa, ele está espalhadão, dono da sala. Boceja e me cumprimenta com voz preguiçosa.

- Harry, Harry!

Respondo.

- Que vida maneira!

Concluo com certa inveja.

Ele é um gato branco que não quer ser dessa cor. Gosta de se camuflar com o barro vermelho. Não só com o barro, mas com cinzas, folhas, flores, penas de pássaros e tinta, se tivesse.

Harry adora tirar uma soneca no encosto do sofá e deixá-lo coberto de pêlo, mas sabe que isso não me agrada nada. Por isso na hora em que chego, o que ele faz? Pula e se deita enrolado na sua sestinha com a expressão mais charmosa do mundo, com uma pata do lado de fora, para mostrar que já é grande e que não cabe mais naquele espaço.

Faço-lhe um carinho e ele permanece ali apenas para me agradar. Doce Harry! Quem é capaz de tamanha doçura?!

domingo, 22 de julho de 2007

Os donos do jardim


Beija-flor vem tomar banho debaixo da chuva que o menino faz com a mangueira. Entra ali e esfrega as asinhas de forma educada. Dá novo mergulho, revolteia numa pirueta, pousa num galho e fica se esquentando. Depois vai catar gotas d'águas nas folhas.

Um canário verde-cinza canta no galho da palmeira chamando uma companhia para fazer um ninho. Ele bica as folhas secas, retira pequenas fibras, olha em torno, depois canta. Ele insiste. Passa horas cantando ali. Não sei por que não lhe atendem o chamado. O canário segue cantando sozinho, manhã adentro.

Um pássaro maior do que o canário, com o peito enfunado como o de uma pomba, também canta sozinho. De manhã, o gavião passou com um passarinho no bico, um bem-te-vi o perseguia. (Não sei por que esse passarinho pequeno é o único que tem coragem de desafiar o gavião.) Talvez fosse a fêmea de um dos pássaros que cantam sozinhos no jardim.
Um exibido casal de sabiá canta em uníssono em cima do ipê amarelo carregado com a primeira flor.
Tardezinha, o passarinho solitário vem cantar de novo. Escolhe a árvore mais alta, o último ramo, pousa ali e fica cantando. Olha em redor como se procurasse uma resposta. Outros passarinhos cantam, mas nenhum tem o canto igual ao seu. Sua esperança é comovente.
Mas antes que o céu escurecesse, eis que o seu canto ecoou. Ele ouviu o chamado do outro, mas não se alvoroçou. Permaneceu no mesmo ramo e, pacientemente, aguardou a aproximação. Acho que foram dormir juntos. Que sejam felizes!

terça-feira, 10 de julho de 2007

A Mulher que Vendou os Olhos

Você me pergunta por que uso esta venda nos olhos. Não sou cega. Nem tenho os olhos feios. Asseguro-lhe que são belos. Foi obra de um demônio. Por isso se um dia um demônio lhe procurar e soprar no seu ouvido a verdade, fuja. Não lhe dê ouvidos.
Não faz muito tempo, um desses seres me procurou e perguntou se acaso eu não quereria saber a verdade.
- A verdade sobre o quê? - Indaguei.
- Sobre o céu e a terra.
- Não. É conhecimento demais para minha cabeça. - Recusei. - Quero apenas a verdade sobre os homens.
O demônio sorriu com ironia. Observou-me por algum tempo com ar paternal, depois advertiu:
- Não podeis modificar as opções feitas em datas anteriores.
- Demônio, não me fales por enigmas, seja simples que entendo pouco mais que nada de filosofia. Queres a minha alma em troca?
- O que é isso?! - Ele retrucou meio indignado.
- Sequer pedes minha alma? Então desembuche logo. Diga a verdade sobre os homens que estou louca para descobrir o que se passa dentro deles.
O demônio desapareceu. Segui sozinha pela estrada, andando apressada, na expectativa de que a verdade me fosse revelada. Mas nada havia mudado debaixo do céu.
- Tudo o que o demônio disse não passa de uma brincadeira!
Estava chegando a essa conclusão quando entrei na curva do caminho. O cenário tornou-se espantoso. O céu escureceu, as árvores secaram, as flores dos arbustos murcharam. Ao longe, avistei um homem sem cabeça. A coisa mais inverossímil do mundo era que ele estava vivo e trabalhava! Sentado numa poltrona, observando-o, havia um outro. E, para meu espanto, ele comia a cabeça do primeiro.
- Ei, não faça isso! Não sabe que não pode comer um outro homem?!
O dito cujo avançou na minha direção como se quisesse me agarrar. Fugi sem olhar para trás.
Quando me vi livre, comecei a xingar aquele demônio. O que ele queria me dizer com aquilo? Queria me assustar! Agora devia estar dando risadas. Só queria se divertir às minhas custas!
Para minha sorte ou azar, avistei uma linda casa onde havia um rapaz afiando uma foice. Pareceu-me uma pessoa normal. Pelo menos possuía a cabeça no lugar.
- Boa tarde.
Cumprimentei-o, mas ele não deu resposta. Passou os dedos pelo gume do instrumento e, olhando por cima da minha cabeça, esbravejou:
- Voltem. Escondam-se, monstrinhos.
Virei-me e encontrei dois seres diminutos, da estatura de uma criança, cujas faces eram cansadas e envelhecidas. Vinham trazendo nas costas pesados sacos de batatas. Obedecendo ao sujeito, eles caíram por terra.
- O que é isso? Poderia me explicar?
O homem, em vez de responder, girou um laço com o qual me prendeu.
- Tudo o que entra na minha propriedade me pertence.
Ele disse, amarrando-me como um cão no tronco de uma árvore.
Vivi um longo tempo na companhia dessa criatura que para ser o diabo só faltava morar no inferno. Mas, não. Ele morava num lugar aprazível, um lugar cheio de árvores e pássaros cantores.
Os seres que ele mantinha como escravos agrediam-me. Eu prometia libertá-los em troca de sua ajuda, porém, eles não acreditavam. Atiravam-me pedras, chutavam-me ou me mordiam.

Uma noite, desceu sobre mim uma ave gigantesca e com seu bico ela desatou o nó que me prendia à árvore. Estava livre!

O meu algoz dormia. As duas criaturas também. Eu deveria ter fugido dali o mais rápido possível, mas a curiosidade fez com que eu desse uma espiada na casa.

Era uma morada muito rica. Havia muitos objetos estranhos, porém, nada me estranhou mais que três corações expostos dentro de uma cristaleira. Um deles era grande, os outros pequenos. Toquei-os. Eles pulsavam! Parti assustada.

Lembrei-me do homem da estrada. Voltei lá e encontrei-o dormindo numa esteira. Arranquei das mãos do canibal a cabeça e a coloquei nos ombros do dono. Sentindo o seu crânio no lugar, ele acordou. Levantou-se com muita disposição.

- Finalmente posso sorrir! Posso falar!

Ele disse de um jeito exultante. Arrumou as suas coisas e fugiu.

Fiquei para trás. Ia caminhando devagar pensando sobre esses acontecimentos quando dei de cara com o dito demônio, que me indagou:
- E aí? O que está achando do jogo?
- Se eu quisesse ver um filme de terror, comprava o bilhete!
Parti contra ele com unhas e dentes. Ele fugiu dando risada e ainda teve coragem de repetir a advertência inicial.
Assim, já não tenho mais opção. Sou obrigada a ver a verdade. É por isso que uso esta venda nos olhos.

A mulher terminou de contar sua história e, para surpresa de todos, retirou a venda. Seus olhos eram como o farol de Alexandria. Porém, a platéia mal teve tempo de contemplá-los. Apavorada, aos gritos, tapou os olhos. Ninguém sabe o que ela viu.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Dona Divina e Zé Comprido

Dona Divina e Zé Comprido foi o casal mais feliz que já conheci.
Ele era um sujeito muito engraçado. Comprava um par de botina nova e só usava na festa de São João. Isto é, ele colocava-as nos pés, pois quando chegava no local da festa, atrelava-as e jogava-as nas costas. Ficava de pés descalço do jeito mais natural do mundo.
Mas bastava dona Divina aparecer e dizer quase num resmungo:
- Nhô!
Zé Comprido mais que depressa entendia o recado e colocava o calçado. Porém, na hora em que ela dava as costas, voltava a pôr os pés no chão. Ficava jogando truco cofiando o bigode. Os seus companheiros bebiam pinga. Ele só ficava sentindo o cheiro e pensando na Dona Divina, que com certeza, estaria rezando o rosário, tirando terço, acendendo velas, pedindo perdão pelos pecados que o marido lhe obrigava a cometer.
- É fornicação, homem. Deixa-me dormir em paz.
Porém, depois de tanto remelecho, entre apelos e beijos, a mulher terminava cedendo. E a filharada crescia.
A coisa mais estranha era a falta de semelhança entre os filhos do casal. Eram treze criaturas, cada uma com o semblante tão diferente da outra que ninguém julgaria que fossem irmãos. Mas Dona Divina era mulher honesta.
Uma vez alguém insinuou que o seu Zé Comprido tinha esse apelido por causa do tamanho do seu chifre. Dona Divina espichou os olhos para o sujeito. Não precisou dizer nada, deu-lhe um nó na língua. O autor da infâmia está com a língua presa até hoje. Quem manda querer atrapalhar a felicidade dos outros!

terça-feira, 3 de julho de 2007

O enigma do desaparecimento de Liliana

– Agostinho, Liliana morreu.
Foi na manhã do dia vinte e dois de junho de mil novecentos e oitenta e seis. Era um domingo, lembrava-se. O segundo dia do inverno. Ainda estava na cama quando ouviu o telefone tocar. Sua esposa fora atendê-lo e voltara com aquela notícia.
– O quê? Que Liliana?!
– A sua Liliana!
Disse-lhe a esposa com certa rispidez.
Agostinho se levantou atordoado. Acordando, finalmente, calçou os sapatos e meteu-se na sua roupa. Enquanto isso, as palavras iam penetrando em seu ouvido, em seus olhos, em seu coração, fazendo um furo no seu peito.
– Repete, por favor. A Liliana...
– Lamento, Agostinho!
Disse Sílvia e, num gesto de carinho, apoiou o esposo, amarrando o cadarço dos seus sapatos.
– Mas ela não estava doente! Foi algum acidente?
– Não sei dos detalhes.
– E você não perguntou?
– Não. Eu não tive coragem.
– Por que não perguntou? Talvez nem seja a Liliana mesmo. Sei lá. Pode ser um trote. Ela estava tão bem. Não acredito!
Há mais de vinte anos, ele ouvira aquela notícia, mas a frase estava tão fresca na sua memória que parecia que a havia escutado ontem. Porém, naquela manhã, ele ouviu a sua esposa dizer: "Agostinho, Liliana voltou."
Ele despertou tomado por uma louca alegria.
– Liliana voltou, Sílvia? Eu sabia que ela estava viva!
Mas logo se deu conta de que havia sonhado e que sua esposa dormia profundamente.
Vestiu o seu sobretudo. Era inverno novamente. Calçou os sapatos e prendeu os seu próprios cadarços. Pegou a sua maleta com muito vagar para não acordar Sílvia. Guardou ali o retrato de sua mãe e o seu de quando menino, preencheu o restante do espaço com livros. Não pegou mais nada.
Olhou para a mulher estendida na cama. Pareceu-lhe uma estranha. Admirou-se de que nunca tivesse notado o aspecto dela. Observou-a com espanto. Aquela mulher não correspondia à imagem daquela que ele tinha na mente. Era estranho. Sem entender por que vivera com aquela estranha por tanto tempo, ele se foi.
Onde estava Liliana? Era um mistério! O que sabia era que uma parte dela sempre vivera dentro de si.
– Enterre essa morta, pelo amor de Deus!
Quantas vezes Sívia lhe pedira isso? Ele se recusava. Seria mais fácil enterrrar a esposa.
Quando ele sumia de casa, todos já sabiam: ele estava com a "defunta".
Agostinho ficava horas diante do sepulcro, que possuía uma escultura de Liliana com seu cão e os dizeres: Liliana Crocci e seu fiel amigo Babu. Não havia nenhum epitáfio, apenas uma estrela com a data de três de março de mil, novecentos e sessenta, e uma cruz com a data da morte.
Na opinião dele, ali devia estar escrito: "Não sinta inveja do meu cão!"
Ele se recordava da sensação que experimentou quando conheceu Liliana e que havia escrito:
"Hoje conheci a mulher em quem deveria ter dado o primeiro beijo."
Mas ele já estava casado e com um filho pequeno. Era um bebê tão frágil e tão meigo. Tão dependente de seu amor. Optara por seu filho. Porém, fazia uma semana que aquele bebê havia se casado com uma moça incrivelmente parecida com Liliana.
Aquela semelhança perturbava-o e fazia com que ele sentisse um ponta de inveja do filho. Ele meditava:
– E pensar que deixei Liliana por causa dele! E se eu tivesse fugido com Liliana?!
Uma única escolha e se muda todo o rumo da existência!
Agostinho saiu de casa naquele dia prometendo a si mesmo que voltaria quando descobrisse a causa do enigmático desaparecimento de Liliana. Até hoje não voltou.

domingo, 1 de julho de 2007

Diário de Viagem - Passageiras Clandestinas, Buenos Aires, 07 de junho de 2007

Quando se quer escrever um diário não se pode confiar na memória, muito menos em papéis avulsos! Eu já sabia o quanto a primeira nos confunde, porém que os papéis tinham vida e saíam voando por aí, feito pássaros que se libertam da gaiola, eu não sabia! Foi o que os meus papéis avulsos fizeram! Agora eles devem estar em Buenos Aires, Deus sabe em que mãos, mais provavelmente numa lixeira.
Graças à memória da Jô, minha amiga e companheira de viagem, é que posso afirmar: mal vi a beleza de Buenos Aires, desmaiei na cama do hotel. Que disposição! Que sublime! Mas, considere, foram quatorze horas de viagem. É a duração do percurso Pelotas – Buenos Aires, feito de ônibus, isto quando não há nenhuma confusão aduaneira. Dependendo do “humor” dos fiscais da aduana do Uruguai, podemos ficar por horas nesses divertidos paradouros, segundo me informaram.
O nosso hotel ficava na rua Lavalle, cruzando com a famosa Florida, uma rua larga, exclusiva para pedestre. É muito bonito ver de longe milhares de silhuetas de cabeças escuras. Pareceu-me que a maioria da gente de Buenos Aires tem cabelos escuros e a pele clara.
Iniciamos nosso passeio por essa rua. Havia neblina e frio, mas o som do tango ecoava caliente e glamouroso e, como um magneto, nos atraiu. Não encontramos um tocador de bandonion, mas um simpático argentino que colocava os CD no aparelho de som numa loja localizada ali perto e que se tornou nosso amigo. Ouvimos a música e analisamos os preços. Estavam razoáveis, por volta de $20 (vinte) pesos, o que correspondia a pouco mais de quatorze reais. Mas não compramos nada, primeiro tínhamos que ir à casa de câmbio.
Sim, pois para duas calculistas como nós, quer dizer, duas pessoas que vivem exatamente de fazer cálculos, sabíamos que era mais econômico comprar pesos. Fiz as contas: para comprar um dólar no Brasil pagamos R$ 2,07 reais. (Roubaram-nos!) Com os mesmos reais se comprava em Buenos Aires 2,90 pesos, ou seja, iam faltar dez centavos de pesos para comprarmos o mesmo dólar, uma diferença de sete centavos de reais! (Um dólar valia três pesos argentinos.) Logo, se observássemos os preceitos de nossa profissão, se fôssemos verdadeiras calculistas, teríamos comprado dólar suficiente no Brasil.
Dirigimos-nos à dita casa de câmbio. A rua estava um formigueiro. Havia muitos argentinos, pero el sonido de su idioma era sufocado pela voz dos brasileiros, que pareciam ter tomado de assalto a rua inteira. Uma verdadeira ocupação territorial! Talvez somente na rua 25 de março (São Paulo) fosse possível ver tanto brasileiro desfilando junto!
Chegamos na casa de câmbio. Por sorte não havia ninguém na fila. Entregamos nossos reais e pedimos pesos. Houve um pequeno problema, nossas para sempre extraviadas carteiras de identidade foram solicitadas. Sem estas nada feito!
Como narrei anteriormente, eu e minha amiga viajamos como clandestinas justamente por não ter esse documento indispensável a qualquer cidadão. De repente, a fila da casa de câmbio cresceu! Estávamos ali como dois automóveis quebrados, congestionando o tráfego.
– E agora?! – Perguntei à Jô, como se ela tivesse a solução para tudo. Embora eu soubesse que no final sobraria para mim! As coisas mais inconvenientes ela sempre deixou a meu cargo, assim como eu deixo os problemas que envolvem gente da alta para ela. Desse modo, comunicar-se com as pessoas sem as cerimônias oficiais cabia a mim.
Restava-nos duas opções: comprar pesos no mercado paralelo ou se virar para um brasileiro e pedir, com a cara mais limpa do mundo, que comprasse a moeda para nós. Foi o que fiz. Voltei-me para a moça que estava atrás de nós. Fiz uma análise de seu perfil a la dona Elaine, a que adivinha o caráter, e vi que ela não recusaria meu pedido. Então, dirigi-me a ela com meu mal castellano, assim:
Acaso se llama Michelle?
Sí.
Ela me respondeu com um sorriso de surpresa.
Bem, eu esperava que ela dissesse “não”, assim eu diria: "porque eu pensei que fosse a Michelle Pfeiffer!"
Esse plano eu imaginei depois. Por sorte, ela era nossa colega de viagem. Se não a conhecêssemos sairíamos dali com o rabinho entre as pernas e iríamos direto para a banca do fulano que vendia pesos sem burocracia, que se dava apenas ao trabalho de virar as notas de reais contra a luz, pois não queria receber cédulas falsas. Eu mesma encontrei mais tarde uma moça com uma nota de cinqüenta reais que ele recusou. Mas é verdade que a moça se chamava Michele e que se parecia com a Pfeiffer.
Depois que ela nos comprou os pesos, tive a cara limpa de lhe dizer isso, ao que ela me respondeu:
– Minha mãe queria que eu fosse parecida com a Michelle Pfeiffer.
– Desejo de mãe é poderoso!
Concluí, despedindo-me. Em seguida pensei: minha mãe também gostaria que eu me parecesse com a famosa atriz, porém não deu efeito nenhum sobre os meus traços!
Ainda não havíamos almoçado. A comida é uma das coisas mais convidativas de Buenos Aires. Por favor, não vá pensando que eu sou uma morta de fome! Comida também é cultura! Há gente que viaja para lá somente para comer e outros somente para comprar. Juro que viajei com o propósito de ver como ficam os plátanos e os álamos no final do outono!
Estava escrevendo sobre a comida. No fundo, acho que o relato dessa confusão era dispensável, o que não podia deixar de escrever era sobre a comida de Buenos Aires! Não há adjetivos que possam descrever o seu sabor! É divina!
Os restaurantes, com seus janelões e portas de vidro, deixam ver tudo da rua: os clientes comendo, os pratos fumegantes, as mesas postas, a carta de vinhos, talvez justamente com o propósito de fazer quem passa por ali ficar com água na boca.
Vi um sujeito mais concentrado do que noiva na hora do casamento diante de um prato. Vi quando ele levou a carne à boca e a mastigou. Naquele momento, desenhou-se em seu rosto uma expressão de profundo prazer. Foi o suficiente para que eu retornasse àquele restaurante e pedisse o mesmo prato. Decorei o endereço, rua Corrientes, 499, Restaurante Pétalo.
A Entrada
Pedimos uma entradinha para acalmar nossos estômagos demasiados ansiosos: um empanado petalo (de presunto e queijo) e outro de frango.
Estava um primor, um verdadeiro brinde.

O Prato Principal
Medallón de lomo (filé) para compartir: lomo al champignon: cebolla, mantega, vino, crema, champignon, demiglacé y papas pela bagatela de $35,00 pesos.
O problema era o preço da água. Uma garrafinha por quatro pesos! Dá vontade de exportar água para a Argentina. Que caro! E o cafezinho é a mesma coisa.
Para que não saíssemos do restaurante com vontade de dormir, tomamos um cafezinho y gracias. Sem direito à sobremesa. Estávamos com os cinco sentidos satisfeitos e não agüentávamos mais tomar nem corrente de ar.

Grande Final
Antes de sair, eis que derrubo o porta-guardanapo, o que fez um barulho estridente. Dei um susto nos fregueses que aguardavam o prato. Os que estavam comendo nada viram, por supuesto...