quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

II - De onde se fala das especialidades e do ofício de Floranza

Floranza trabalha num convento, daqueles medievais, com claustros escuros, capelinhas e santinhos por todos os lados, apesar de ter sido fundado em 1760, quando a Idade Média já havia ficado para trás. É um prédio tombado pelo patrimônio histórico. Ela não entende por que um edifício que só cheira a mofo, que a pintura já desbotou faz tempo, cujos moradores mais numerosos são os morcegos, é tão importante assim. Ela prefere os prédios modernos, claros, retangulares, teto baixo, sem aquelas cúpulas assombrosas de onde a qualquer momento um morcego pode fazer chover na cabeça de quem tiver o azar.
A freira lhe explicou que nada pode ser mudado de lugar. Disse-lhe até que adora o cheiro de xixi de morcego, pois é este o cheiro mais vivo da memória de sua infância, vivida em outro convento. Floranza caiu na risada.
- Irmã, você não pode está falando sério! Jura?
- Pelo coração de Jesus!
- Irmã, todo convento é assim?
- Claro que não, esse é muito especial. É uma relíquia! - Disse a freira com orgulho, não, com satisfação, porque com orgulho é pecado.
Floranza não sabia o que era relíquia. Seu nível de instrução era o básico, sabia ler, escrever com erros de ortografia,(daqueles que o leitor precisa adivinhar o que se queria dizer) e sabia contar. Mas não perguntou o que era. E depois o que isso lhe importava se seu trabalho era: dar-lhe limpar santinho, dar-lhe tirar a poeirinha do andor, das flores artificiais, dar-lhe matar as aranhas das paredes, dar-lhe limpar o piso, sem falar das cacas dos ratos voadores, etc. Três vezes na semana.
Folgava o restante? Não. Só no domingo. Nos outros dias, trabalhava numa casa bonita, ajardinada. Essa, sim, fazia gosto limpar. Mas não gostava muito dos donos. A "patroa" a obrigava a usar um uniforme cinza arrematado com franjas de flores brancas.
- Pra que colocar enfeite nesta roupa? É a mesma coisa que enfeitar um bujão de gás! - Pensava Floranza com os botões do uniforme.
Não que ela tivesse forma de botijão, ela era bem feita de corpo. Floranza tinha sorte. Fazia inveja aos donos da mansão que, de tanto comer sucrilho e outras coisinhas leves, eram obrigados a usar o tamanho GGG.
- Floranza, onde está meu celular? Floranza, onde está a minha bolsa? Floranza, onde está, onde está o meu vestido vermelho? Floranza, onde está o meu calmante? - Todas as vezes era assim, Floranza tinha que dar conta de tudo.
- Sua especialidade, Floranza, é esconder as coisas. Você fez uma especialização nisso, aposto! - Reclamava a patroa.
- E a senhora se especializou em mandar nos outros. A querer tudo na mão. - Dizia Floranza para a gola de seu uniforme, Deus a livre de a patroa escutá-la.
No convento, mais paciente, a freira lhe pedia: Floranzinha, ache o meu dedal, perdi não sei onde. Floranzinha ache meu terço. - E Floranza encontrava. A freira, feliz, elogiava: - Ainda bem, Floranzinha, que tua especialidade é achar as coisas. Menina, um dia, ainda acharás um tesouro!
- Eu já encontrei, é Jesus.
- O teu Jesus é outro! Esse teu Jesus não morreu na cruz como o dos católicos.
Floranza era protestante, porém, não protestou nada. Ficou em recatado silêncio.

3 comentários:

Karl Malak disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Karl Malak disse...
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Karl Malak disse...

Qual é o email desta Floranza?