sexta-feira, 9 de março de 2007

O pequeno e o grande filósofo ou da vanglória ancestral


José Pedro estava em frente ao computador num dos seus joguinhos. Ele me explicava as regras do jogo e eu tentava lhe contar um caso.
José Pedro, me ajude a descobrir o autor desse terrível crime.
- Que crime?
- Ontem à noite, eu escutei o grito do gato branco. Um grito bravo, um grito de briga, entendeu?
Sem tirar os olhos da tela do computador, ele me perguntou:
- E gato grita?
- Bem, gato mia, mas quando ele mia assustando a gente, é como se ele gritasse.
- Entendi. - Ele respondeu, matando mais um de seus inimigos virtuais e dando risadinhas de felicidade.
- Acontece, José Pedro, que, na manhã seguinte, notei que o ninho da pata estava todo bagunçado. Um ser misterioso retirou as penas que cobriam os ovos que a pata estava chocando e colocou em seu lugar folhas de bananeiras. Quem foi essa criatura?
- Uma criatura que gosta de ovo. - Respondeu-me e, logo desviando da conversa, disse com todo entusiasmo:
- Olha, quantos pontos eu já ganhei!
- Mas, José Pedro, os ovos da pata não foram comidos!
- Nesse jogo, eu tenho três tipos de poderes. (ele interrompeu.) Fogo! - mas não tem o de adivinhar! (Continuou.)
- Eu só quero que você pense e me ajude a descobrir.
- Quando eu estiver respondendo a minha tarefa, eu penso.
- Está combinado.
O José Pedro não estava ligando para a minha história. Desisti.
Ele tem cinco anos e, felizmente, o fato de ele gostar de jogos não o impede de ser ele um excelente leitor. Ele lê muito bem. Escutá-lo é muito divertido. Ele lê: transatlântico, libélula, inexorável, retângulo, obtuso, com a mesma facilidade que lê: rosa, furúnculo, filosofia, suculento e por aí vai.
Ele estava concentradíssimo no jogo, então, eu perguntei:
- Quando termina?
- Não sei. Quando eu ganhar.
- José Pedro, você sabia que você é a pessoa que lê da forma mais linda do mundo!
- Ôba! - Ele respondeu.
- Você ganhou ponto, foi?
- Não, é que você falou que eu sou a pessoa que lê mais lindo do mundo!
- E é mesmo. Então, me responda: para quem você puxa ser tão inteligente?
- De ninguém. Eu puxo de mim mesmo. Eu puxo da minha cabeça!
Bem, eu fiquei deslumbrada diante dessa resposta, pois as crianças são ensinadas a responder essa pergunta. Em geral, dizem: eu puxo pra mamãe ou eu puxo pro papai.
Eu achei a resposta do José Pedro tão profunda, tão autêntica, que o fiz repeti-la várias vezes, até que eu a internalizasse.
De repente, eu me vi transportada para o Século VIII a.C, pois me lembrei de Hesíodo, que depois de ter sido esbulhado por seu irmão, compôs "Os trabalhos e os dias", livro que fala do surgimento de uma raça de ferro, que é o próprio tempo de Hesíodo, constituído por fadigas, misérias e angústias. Ele se tornou um aedo (um poeta popular). Mas o seu sofrimento não foi em vão. A partir de Hesíodo se inaugura uma nova tradição ética: a areté (a virtude) deixa de ser atributo natural de bem-nascidos para se transformar numa conquista, resultado do esforço e do trabalho enobrecedor de qualquer homem.
José Pedro é um discípulo de Hesíodo, ele puxa sua inteligência de si mesmo. Ele não precisa da vanglória ancestral. Quantos, ainda hoje, precisam disso!

3 comentários:

Unknown disse...

Pois, eu puxo para Hesíodo.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Ray muito obrigada por você ter tanto carinho por meu filho , você não imagina com ele ficou feliz lendo e eu te garanto que ele nunca vai esquescer dese gesto carinhoso.
BEIJO
ELIETE