sábado, 31 de março de 2007

Ao amado imortal

Eu poderia me descrever assim:
"Sou impulsiva e anticonvencional. Mas tenho pontos fortes. Tenho um excelente olho para a nobreza de espírito num homem. Quando encontro tal homem, prefiro não perdê-lo." Mas essa é a descrição que Irvin F. Yalom faz de Lou Andreas Salomé. A famosa mulher que teve a coragem de dizer "não" a Nietzsche, justamente por achá-lo muito convencional. E perdeu um homem de grande nobreza de espírito.
Suponho que daí veio o ódio às mulheres que impregna boa parte das obras de Nietzsche. Eu o perdôo. Considero todo o seu destempero para com as mulheres um insulto endereçada à sua amada, à sua mãe e à sua irmã. Aliás, enquanto a maioria idolatra a mãe, Nietzsche falando do eterno retorno, confessa o quanto a detestava. O que lhe causava náusea diante de tal possibilidade era ter a mesma mãe, a mesma irmã, por toda a eternidade.
Nietzsche se dizia um escritor para as gerações pósteras. O que ele não sabia era o que o seu amor também era vindouro, que teria que viver mais um século para encontrá-lo!

quinta-feira, 29 de março de 2007

O menino e a bicicleta

Na estrada, eu vi um menininho que segurava uma bicicleta. Ele tinha os cabelos pretos, lisos, rosto redondo, lindo como um curumim. Trajava uma camisa branca de mangas curtas e calça comprida. Ele era franzino, pequeno, delicado em contraste com a bicicletona, daquelas baratas, mais pesadas que o dono.
Ele a segurava procurando equilibrar aquele enorme peso. Estava parado. Não sei por que ele segurava a bicicleta.
Logo atrás dele avistei uma mulher que vinha caminhando com seu passo apressado, certamente para ajudá-lo. E comecei a imaginar o que havia ocorido. Ela vinha pedalando com o menino na garupa, quando sua sandália ou seu sutiã desabotoou e precisou descer para se ajeitar. Enquanto isso, o menino ficou encarregado da bicicleta e, ansioso para chegar logo, ou simplesmente, porque desejava se exibir para a mãe mostrando a sua força, empurrou a bicileta o quanto pôde.
Aquela cena passou pela abertura de três mílimetros de íris de meus olhos ressequidos, molhou-os e foi morar no meu coração.

sábado, 24 de março de 2007

O sagüi e o beija-flor - parte II

Enquanto um bando de bem-te-vis cumprimentava o sol, num coro de uma nota só, cantando:
Bem vindo! Bem vindo!
E um outro fazia o solo, cantando:
Vem! Vem! Vem!
O orangotango, com uma mão esgaravatava os dentes e com a outra coçava o sovaco, escutava o tiziu contar:
- Senhor orangotango, sabe aquele menor de seus parentes, o sagüi?
- O soim?
- É. Acho que dá na mesma. Ele está de caso com o beija-flor!
- Ora, se eu não sei. Isso é notícias de tresanteontem. Conte outra!
- Mas você já viu que namoro besta. O beija-flor vai lá pousa na cabeça do sagüi, faz-lhe uma cosquinha e voa!
O orangotango, que era macaco velho, duvidou:
- O quê? Ali tem coisa... - E, atirando fora o graveto com um quilo de sujeira, fez uma cara de mistério.
O sabiá, que estava em silêncio e ouvia tudo, meteu-se na conversa:
- Já vi que vocês não entendem nada de amor! Que graça tem um amor assim, sem ninho, sem ovinhos pra chocar!
O bem-te-vi, feliz porque o sol havia surgido brilhante, do que jeito que ele gostava, interveio:
- O que ouvi falar é que o beija-flor é um sagüi que se camuflou.
- Foi?! Mas como? - Quis o sabiá saber.
- É mais fácil beija-flor se camuflar em sagüi. Não acha seu orangotango? - Perguntou o Tiziu.
- Hehehehe. - O orangotango abriu a sua bocarra dando uma gargalhada, as aves fugiram por causa do seu hálito horrivel.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Como você descobre que está ficando velho

Ladrão entra no seu carro
rouba o que estiver lá
e deixa seus CDs pra trás.
Me disse um homo sapiens.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Direitos do Livro

Art. 1º - Todo livro merece ser aberto e ser lido.
Parágrafo único: Até prova em contrário.
Art. 2º - Toda pessoa que obtém um livro
e o deixa fechado por mais de cinco anos
merece ser processado por crime hediondo.
Art. 3º. Todo livro bom, deixado de lado pelo dono,
merece ser furtado pelo primeiro gatuno.
Art. 4º - Todo livro novo deve ser cheiroso.
§ 1º : Fica resguardado o direito de os livros velhos cheirarem a mofo.
§ 2º: Fica garantido o direito de também provocarem alergias.
Art. 5º - Todo livro tem direito de espalhar idéias, infundir sentimentos, criar polêmica...
Art. 6º - É garantido também todos esses direitos ao livro nascituro.

Um barulho interior

O meu problema é esse barulho interior.
Preciso transformá-lo em harmonia.
Numa doce sinfonia,
Chamem-me um monge budista,
um afinador.
Um exorcista.
Não, não chamem este último
Eles são barulhentos.
O que preciso é de um diapasão.
Oh, Santa Cecília,
Oh, Apollo,
Oh, Tom Jobim,
Tirem esse barulho de dentro de mim.

Felicidade

Nada deixa alguém mais feliz do que a ilusão!
Assim me avisou um homo sapiens.

Os pombinhos e o "homo sapiens"

Não, não vou contar do beija-flor e do sagüi.
Vou contar dos pombinhos
que passam o dia se amando
na caixa do ar condicionado do escritório.
Isso é uma verdadeira provocação!
É assim:
Lá fora, os pombinhos passam o dia se amando,
beijam-se, catam-se, ciciam, voam...
lá dentro, os idiotas passam o dia sentados, ralando, com os pés no chão.
Êta vida besta, êta "homo sapiens"
É o que digo
É o que diria Drummond.

quarta-feira, 21 de março de 2007

História do beija-flor e do sagüi


Conheço um sagüi que está muito chateado com o beija-flor, só porque o beija-flor deu-lhe uma bicadinha.
O beija-flor, que é pásssaro leve e frágil, nem havia notado que sua bicada havia magoado o sagüi. Porém, o bem-te-vi escutou o sagüi reclamar e, comunicativo como é, (o sagüi o chama de fofoqueiro) foi logo contar ao beija-flor.
Um outro bem-te-vi, que ouvia a conversa, afirmou: "se o beija-flor bica é pra depois suspreendê-lo com seus doces beijos."
- E você já beijou beija-flor?
Perguntou, meio despeitado, o outro bem-te-vi mais velho.
- Não. Não é preciso beijá-lo para saber!
O bem-te-vi, que como jornalista, tem uma velha fofoqueira dentro de si, (o sagüi tem um pouco de razão) espalhou pra todo mundo: "Como pode um sagüi querer bem a um beija-flor". "Como pode um peixe vivo viver fora da lagoa". Como poderei viver...
O tiziu, que é aquele passarinho que diz: "ti-ssíííu", a cada vez que dá um pulinho, ficou abismado e disse:
- O quê?! Já vi muita coisa nesta vida, mas esta do beija-flor e do sagüi não tem registro na história!
O certo é que o tiziu, a cada pessoa que passa, ele diz: psiu! E conta a história do sagüi com o beija-flor.
A sorte é que bem poucos prestam atenção no passarinho!

segunda-feira, 19 de março de 2007

Resposta de Ofisa

Amiga,
Pudera eu ouvir o quáquáquá do pato amando a pata!
Ecoa em meus ouvidos o horroroso som do esquife.
O templo a que te referiste está com as portas fechadas.
Foi duro assistir ao seu fechamento.
Cada porta que os guardas sisudos fechavam
soava para mim mais uma vez como o som do esquife.
Eles não escutaram o meu clamor e me ameaçaram.
Disseram que se eu não o desocupasse eles me prenderiam lá dentro.
Eles me empurraram e me expulsaram do templo.
Ai, a luz me ofuscou
ou foi o amor que me cegou?
Antes de partir, ele me pediu: "Não me abandone." Eu fiquei em silêncio.
Ele prosseguiu com ar sério: "Fique tranqüila que não lhe abandonarei."
Ele ia me beijar no rosto, mas terminou beijando-me os cabelos, então disse:
"seus cabelos são muito saborosos."
Ambos rimos. E assim foi o nosso último encontro.

domingo, 18 de março de 2007

Nota


Ofisa, o teu amor foi embora!
Não mais escutarás o som de sua voz, nem os seus gritos de guerreiro. Sequer o som dos aparelhos em que ele fazia exercício. E o seu sorriso, o seu verdadeiro encanto!
Eu te avisei!

Mas tu ergueste em torno desse amor uma catedral de mil torres.
Cada dia, construías uma torre. Depois de trinta torres erguidas, tentaste destruí-las, mas vinte delas resistiram. E depois disso, elas se multiplicaram feito o Templo da Sagrada Família de Barcelona.
E tanto é verdade que, como esse projeto, o teu amor se estendeu para fora do tempo e nunca se concretizou. Esqueceste quantos anos tinha e que para edificar esse amor o teu resto de vida seria pouco?

Não me escutaste porque és uma tonta!
E agora, do outro lado do muro, onde o teu amor habitava, o que escutas é o patético quáquáquá do pato tentando cantar a pata.

Não chores, minha amiga, porque ele também te amava muito!

sábado, 17 de março de 2007

A melodia do sol


Bem-te-te-vi, Bem-te-vi-te-vi, Bem-te-vi-te-vi, o pássaro cantava ainda há pouco,
espiando o nascente. Alegro con brio.
Pensei que ele cantava para mim. Mas era para o sol.
Depois ele disse calmamente: "acorda", "acorda". E agora está quieto no galho da árvore esperando que seu pedido seja atendido.
Mas o sol continua deitado, esfrega o nariz, rola mais um pouco pelo universo e pede mais um instante.
E, ontem, observei que o bem-te-vi, quando ver o sol partir, vermelho, incandescente, vanila, dourado, fica melancólico e canta un adagio sostenuto: te vi, te vi, te vi...
Ô passarinho, eu não sabia que era o teu canto que fazia o sol nascer todo dia tão bonito assim e partir de forma tão magnífica!
São 6:05 da manhã.
P.S. Sugestão: Se acaso desconhece o que é um canto alegro con brio acorde cedo e ouça o bem-te-vi, mas se não lhe agrada acordar tão temprano, ouça o 1º movimento da Sinfonia nº 5 de Beethoven. E para um adagio sostenuto sugiro que ouça o 1º movimento da Sonata nº 14, "Sonata ao Luar", também de Beethoven. Sinto em dizer que se você é uma pessoa que escuta e nunca parou para ouvir uma dessas músicas, nem o canto do bem-te-vi , ainda não experimentou o que é ser verdadeiramente feliz.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Ao poeta Oswaldo Pullen

Hoje não escrevo um poema, nem ontem escrevi. Talvez amanhã.
Nem leio mais um poema, por hoje, até as 19 horas.
Mantenho distância do poema por um jejum vesperal.
Aguardo uma ceia de poesia.
Fui informada que são 22 petiscos,
alguns são de tons amarelos,
de tanto tempo que não vêem o sol,
outros são novinhos em folha, são verdes,
outros já estão maduros.
Porém, uma gaivota que os provou, e que é pessoa de muito bom gosto,
me disse que todos são muito saborosos
e disse, ainda, que eles acabam de mudar de cor,
que estão rútilos de alegria,
pois chegaram ao seu sonhado destino.




terça-feira, 13 de março de 2007

Amiga Secreta


Tenho uma amiga secreta para quem escrevi uma carta. A carta continha um pedido: "Querida Ester, eu não a conheço, mas eu vi a sua foto e gostei muito de você. És uma criatura linda! (troquei propositalmente o pronome, pelo efeito sonoro que daria.) Estou escrevendo uma história para crianças da sua idade, (10 anos) e gostaria muito que você lesse o meu texto e fizesse uma crítica..." Não lembro mais o que escrevi.

Mandei o catatau para ela, considerando a sua idade, quase 50 páginas.

E veja de que grande gentileza essa menina foi capaz: ela leu tudo numa mesma noite, adiando o seu horário de dormir. E escreveu a crítica mais preciosa que já li. Com desenvoltura profissional apontou os erros de ortografia que encontrou, assinalando-os com uma bolinha e uma seta, e assinalou as palavras que não conhecia apenas com uma bolinha. E depois de apontar estas falhas, ela me disse essas palavras de estímulo: "mas as críticas só são boas, eu gostei muito de seu livro, não teve nenhuma parte que eu não gostasse." E no início ela havia dito: "quando eu comecei a ler o seu livro, eu não consegui parar de ler."

Ester é a menina da foto. Se um retrato pode revelar toda a doçura e a beleza que um ser tem dentro de si, é este o caso da foto de Ester.


Uma moça desfila de biquini na esplanada

Atenção,
uma moça desfila de biquini no asfalto! No asfalto de Brasília. Entre dois Ministérios. Não é desfile de moda!
Ela anda de peito aberto, (embora eu possa vê-la apenas de costas), com suas pernas longilíneas e musculosas, sua bunda volumosa e bem feita, sua cintura fina e com seus cabelos crespos voando ao vento. Sua cor de bronze brilha sob o sol de prata de Brasília.
O homem que vigiava os carros falou:
É uma louca!
O dono do carro comentou:
Eu a vi passando na faixa e é mulher mesmo.
O guarda do Ministério, sussurrou:
Gostosa!
E todo mundo se interrogou por que a moça passou de biquini em frente ao Ministério como se a praia fosse logo ali. E esse mistério parece que tomou o espírito de quem viu aquela aparição mais do que a transposição das águas do São Francisco.
Que pena de quem não viu a moça de biquini caminhando na esplanada de Brasília!

domingo, 11 de março de 2007

Meu jardim tem palmeira onde o vento...


Meu jardim tem palmeira
onde o vento vem cantar
Não permita Deus que eu morra
sem que aviste o buquê
que a palmeira há de dar!
Canta, canta passarinho
Nina o filhote que a palmeira
Começa agora mesmo a gestar.
Daqui há quinze anos,
quem sabe, ele nascerá!

(Mote de Gonçalves Dias.)

Eu devia saber, mas não sabia da história da palmeira imperial (Roystonea oleracea), até o dia em que fui ao Jardim Botânico no Rio de Janeiro. Não da palmeira imperial do Jardim Botânico, que todos conhecem, mas a da palmeira imperial do meu jardim e das que enfeitam praças e chafarizes por aí.
Entre as primeiras mudas plantadas no Jardim Botânico está a palmeira imperial, que foi plantada pelo próprio Príncipe Regente. A partir daí, ela passou a ser designada pelo nome que nós conhecemos: "palmeira imperial"
Acontece que, após vinte anos de plantada, em 1829, sob a folhagem de uma única palmeira, a mais velha, surgiram, como espigas de trigo pálidas arrumadas em forma de buquê, flores e pequenos frutos.
O que fizeram? Ficaram contentes e admirados? Talvez! Porém, para que a espécie não se disseminasse, o diretor mandou tirar e queimar todos os seus frutos.
Mas essa história não podia ficar assim. À noite, os escravos, com habilidade atlética, subiam na árvore, colhiam os frutos e vendiam, na clandestinidade.
Eu gostei. O vento também gostou... E a velha palmeira gostou mais ainda, pois depois de ter sido fulmida por um raio, em seu lugar plantaram um de seus filhinhos. E ela se tornou imortal!

sexta-feira, 9 de março de 2007

O pequeno e o grande filósofo ou da vanglória ancestral


José Pedro estava em frente ao computador num dos seus joguinhos. Ele me explicava as regras do jogo e eu tentava lhe contar um caso.
José Pedro, me ajude a descobrir o autor desse terrível crime.
- Que crime?
- Ontem à noite, eu escutei o grito do gato branco. Um grito bravo, um grito de briga, entendeu?
Sem tirar os olhos da tela do computador, ele me perguntou:
- E gato grita?
- Bem, gato mia, mas quando ele mia assustando a gente, é como se ele gritasse.
- Entendi. - Ele respondeu, matando mais um de seus inimigos virtuais e dando risadinhas de felicidade.
- Acontece, José Pedro, que, na manhã seguinte, notei que o ninho da pata estava todo bagunçado. Um ser misterioso retirou as penas que cobriam os ovos que a pata estava chocando e colocou em seu lugar folhas de bananeiras. Quem foi essa criatura?
- Uma criatura que gosta de ovo. - Respondeu-me e, logo desviando da conversa, disse com todo entusiasmo:
- Olha, quantos pontos eu já ganhei!
- Mas, José Pedro, os ovos da pata não foram comidos!
- Nesse jogo, eu tenho três tipos de poderes. (ele interrompeu.) Fogo! - mas não tem o de adivinhar! (Continuou.)
- Eu só quero que você pense e me ajude a descobrir.
- Quando eu estiver respondendo a minha tarefa, eu penso.
- Está combinado.
O José Pedro não estava ligando para a minha história. Desisti.
Ele tem cinco anos e, felizmente, o fato de ele gostar de jogos não o impede de ser ele um excelente leitor. Ele lê muito bem. Escutá-lo é muito divertido. Ele lê: transatlântico, libélula, inexorável, retângulo, obtuso, com a mesma facilidade que lê: rosa, furúnculo, filosofia, suculento e por aí vai.
Ele estava concentradíssimo no jogo, então, eu perguntei:
- Quando termina?
- Não sei. Quando eu ganhar.
- José Pedro, você sabia que você é a pessoa que lê da forma mais linda do mundo!
- Ôba! - Ele respondeu.
- Você ganhou ponto, foi?
- Não, é que você falou que eu sou a pessoa que lê mais lindo do mundo!
- E é mesmo. Então, me responda: para quem você puxa ser tão inteligente?
- De ninguém. Eu puxo de mim mesmo. Eu puxo da minha cabeça!
Bem, eu fiquei deslumbrada diante dessa resposta, pois as crianças são ensinadas a responder essa pergunta. Em geral, dizem: eu puxo pra mamãe ou eu puxo pro papai.
Eu achei a resposta do José Pedro tão profunda, tão autêntica, que o fiz repeti-la várias vezes, até que eu a internalizasse.
De repente, eu me vi transportada para o Século VIII a.C, pois me lembrei de Hesíodo, que depois de ter sido esbulhado por seu irmão, compôs "Os trabalhos e os dias", livro que fala do surgimento de uma raça de ferro, que é o próprio tempo de Hesíodo, constituído por fadigas, misérias e angústias. Ele se tornou um aedo (um poeta popular). Mas o seu sofrimento não foi em vão. A partir de Hesíodo se inaugura uma nova tradição ética: a areté (a virtude) deixa de ser atributo natural de bem-nascidos para se transformar numa conquista, resultado do esforço e do trabalho enobrecedor de qualquer homem.
José Pedro é um discípulo de Hesíodo, ele puxa sua inteligência de si mesmo. Ele não precisa da vanglória ancestral. Quantos, ainda hoje, precisam disso!

terça-feira, 6 de março de 2007

Perfume de Tulipa


Certas pessoas sabem falar de maneira tão bela que ouvi-las conecta certa parte do nosso cérebro que leva os nossos olhos a brilhar . (Agora mesmo, infelizmente, estou ouvindo uma conversa que de bela não tem nada e conecta aquela parte do meu do cérebro ligada à irritação.)
As palavras tocam-nos a pele. Há palavras que em si já carregam um grande poder sinestésico, ou seja, fazem-nos sentir parte daquilo que representam. Por exemplo, não posso ouvir o nome de certas flores sem que me venha junto a lembrança de seu perfume: tulipas, cathléias, girassol, crisântemo, azaléia, rosa, alamanda, helicônia, flores de jade. É verdade que nunca toquei uma tulipa, mas esse nome tem para mim um delicioso perfume.
Estas pessoas que nos hipnotizam com uma conversa, não dá para dizer o que elas têm, pois afinal o resultado depende também do receptor. Mas há aquelas em cuja boca as palavras parecem ter um sabor novo e uma frase repetida há muitos anos soa como novidade, pois a entonação, o gosto que se transmite ao pronunciá-la retira a camada de pó sob a qual o sentido da frase estava escondido. Libertada do seu jeito mecânico de ser dita a frase volta a brilhar. Assim posso dizer: nasce um menino neste instante, ele suspira e chora! Nasce uma menina agora mesmo, ela respira, afloram as lágrimas em seus olhos! (Aos ouvidos de alguém essa frase tem um sentido novo, daquela que deu a luz, mas esse fato já se repetiu bilhões de vezes.)

domingo, 4 de março de 2007

Ainda sobre a solidão...

Quando o comentário é mais tocante do que objeto que lhe deu origem, ( que foi o caso do comentário sobre o texto anterior), ele se torna o texto principal.
Não possso deixar de pensar sobre essa menina que jurou para si mesma não mais escrever coisas tristes e, rompendo com seu trato, resolve escrever sobre sua solidão. Nada posso lhe ensinar, isso seria uma grande petulância. Eis que ela me alerta: quem tem companhia também tem solidão. E mesmo que essa companhia seja a de uma pessoa amada e muito estimada. Sim, não há escudo contra a solidão. Quantos não trocariam sua solidão pela companhia da pessoa mais vil! Quantas vezes isso acontece e sentimos o gosto amargo do nosso engano! Acontece e se repete. E não se aprende!
Corrijo. Por vezes, se aprende, e, nesse caso, até que apareça a verdadeira companhia, é mais sábio desejar a própria solidão e repousar nela como quem repousa embevecido sob o Farol de Alexandria, em cujo interior ardia uma chama que irradiava a sua luz a dezenas de quilômetros. Como seria bom! Mas a solidão, em sua forma mais pungente, vem romper com a nossa paz, impor-nos suplícios e penas. "Assim se deu, assim o desejei."